Do outro lado
- paralereamar
- 24 de out. de 2019
- 9 min de leitura
Atualizado: 18 de jun. de 2022
Um conto de Antonella Scanavez.
O vale era escuro, úmido, frio e cheio de lama fétida. Indiferentes aos gritos dos que estavam atolados até o pescoço, alguns espíritos pisoteavam as mãos estendidas e chutavam as cabeças dos que clamavam por ajuda.
Os mais fracos não passavam de obstáculos atrapalhando chegar ao chão firme, liberdade alcançada apenas pelos mais fortes que se agrupavam de acordo com os interesses.
Marcus chegou a um grupo que se encontrava ao redor de uma fogueira.
- Tenho um trabalho para você, Logof.
- O que precisa, chefe? Perguntou sem virar-se para o homem.
- Vou levá-lo ao outro lado, lá tem uma família que não pode crescer. A criança que está por vir não pode nascer. Entendeu?
O morcego-vampiro, da espécie Desmodus rotundus, que escondia no escuro, aproximou e ficou sob a penumbra formada pelas cavidades das cavernas. Ao encarar o mestre, todos puderam ver os dois olhos vermelhos do enorme animal.
Certo dia nas profundezas do vale, apesar do tamanho, ele fora capturado por uma faminta alcateia. Marcus, com a ajuda de um de seus capangas, o Lobo, convenceu o bando canino a soltar o mais novo integrante do grupo. Juntos, eles partiram para a parte mais alta.
O escambo estava feito, ele iria conviver naquela região com a espécie humana, receber alimento, casa e proteção, porém, prestaria serviços a seu mais novo dono.
- Sim, eu entendi.
Os três saíram do buraco-soturno, seriam dias até chegar ao portal que levava à Terra e apesar das possibilidades de resgatar soldados pelo caminho, aquele não era o momento, era hora de levar mais um combatente para o outro plano.
Uma vez orientado pelos Capa Branca, Marcus aprendeu manipular energias que abriam o portal. Assim como seus companheiros da época, ele recebeu uma missão, mas diferente de alguns e igual a tantos outros, não estava preparado.
A ideia de ter que ajudar seu próprio assassino, o enlouqueceu. A mente registrara a cena do pai enfiando o punhal em seu corpo. A revolta era maior que ele. Tinha fome de justiça.
O ressentido coração, viu naquela tarefa a oportunidade de vingar-se do velho pai. Foi, então, expulso pelos índios, os guardiões da tribo.
Por anos, Marcus vagou tentando achar um lugar onde as energias existentes conseguissem abrir um portal. Após décadas de tentativas e aprofundando o que tinha aprendido, o objetivo foi atingido.
A porta da vingança foi aberta. As travessias sempre eram acompanhadas por uma delicada lembrança do carinho materno, eram os únicos pensamentos de amor que ele ainda carregava, porém em segundos, essas lembranças desapareciam.
Assim que os três atravessaram, Marcus já os transportou para o lar sobre o qual falara ao companheiro. Da esquina, Logof observou que vários espíritos estavam na calçada e adentravam a casa onde deveria trabalhar.
-Mas chefe, e toda essa gente?
-Não se preocupe, eles não o enxergam. Possuem uma energia vibratória diferente da nossa.
Logof, Marcus e o lobo entraram na casa. Vera sentada à mesa da cozinha, sentiu um arrepio em seu braço direito e rezou pedindo proteção. As súplicas foram suficientes para que um campo magnético dourado envolvesse toda a casa, a blindando dos guerreiros do mal.
- Não se preocupe Logof, vou ensiná-lo a manipular sua passagem.
- Por que esse povo fica em volta dessa mulher?
- Está vendo aquela luz sobre a cabeça da infeliz? É aquela luz que os atraem, eles sabem que ela pode os ajudar.
Era visível o cansaço e o enfraquecimento de Vera. Preocupada, ela voltava às orações e era envolta por uma luz que a restabelecia.
- Vamos ficar por aqui até nosso atravessador chegar.
-Chefe, cadê o cara que estava trabalhando aqui antes?
- Se por acaso abrir, durante a noite, um portal branco sobre a casa, você deve correr para longe daqui e voltar só ao amanhecer. Esse portal tem levado todos que aqui deixo. Fique atento.
Logof e o lobo se olharam e em tom de zombaria, o cão disse:
-Bye, bye, rato de asas.
Marcus deu um tapa na cabeça do lobo.
-Quieto, daqui a pouco nosso atravessador chega.
Dentro de casa, Vera tinha terminado suas orações e dedicava-se aos afazeres quando o portão abriu.
- É ele, nosso atravessador. Olhe e aprenda o que você tem que fazer. Vamos!
Os três correram em direção ao homem que fechava o portão com a chave.
- Já falei para essa mulher não deixar o portão aberto.
Marcus observou que, como sempre, o Marido de Vera estava nervoso e então falou ao ouvido do homem:
- Ela vai acabar abandonando você, quem vai querer um homem de quem não precisa. Ela é independente. Você é um Zé ninguém.
O homem, mais nervoso que antes, entrou pelo corredor. A energia irradiada por ele enfraqueceu o campo magnético gerado pelas orações. Quando os quatro chegaram à frente da porta da cozinha, o escudo protetor ficou menos brilhante e menos denso, até que desapareceu por alguns segundos. Tempo suficiente para os três entrarem na casa de Jorge.
- Boa noite amor, você chegou?
Ao tocar o marido, Vera ficou tonta e sentiu todo o corpo formigar.
-Que foi?
- Nossa! Você está carregado, precisamos fazer uma oração. Venha, vamos ler o evangelho.
-Ah, claro! O problema sempre sou eu. Disse o marido deixando a esposa falar sozinha.
-Mas eu não disse que o problema é você.
O trio seguiu Jorge pois a energia de Vera os incomodava.
Sentado no sofá da sala, Marcus passou todas as instruções e voltou para o vale com seu companheiro, o Lobo.
De longe, Logof observou Vera organizando a mesa do jantar e então com o pensamento, aumentou o fogo. Um cheiro de queimado chamou a atenção da mulher.
- Eu não abaixei esse fogo?
Chateada, ela passou o arroz que estava na parte superior da panela para uma travessa. Queria muito fazer um jantar gostoso para o marido, por esse motivo, ficou nervosa.
Logof aproximou-se de Vera e percebeu que não sentia mais tanto desconforto, a energia dela tinha abaixado. Podendo ficar mais perto de sua vítima, começou a induzir os pensamentos da garota.
- Olha a hora que ele chegou? E foi direto para o banho, nem quis conversar. Devia estar com outra. Quanto tempo ele não a procura na cama? Você está sendo traída.
Quando Vera virou-se para colocar a travessa de arroz na mesa, a fúria era nítida nos olhos da mulher. Nesse momento, o desconforto tinha passado completamente, o morcego não sentia mais nada, sentou-se em uma das cadeiras da mesa e ficou colocando caraminholas na cabeça de Vera.
- Que cheiro de queimado é esse? Você não consegue nem fazer um arroz? Disse Jorge com a toalha amarrada na cintura.
- Se você pagasse uma empregada, não comeria arroz queimado.
-Ah, é isso que você quer, não é mesmo? Um homem rico para te sustentar.
-Como você tem coragem? Não basta eu trabalhar o tanto que trabalho e colocar todo o meu dinheiro na casa? Eu não preciso de homem para me sustentar. Eu preciso de um marido. E onde você estava até essa hora?
- Não enche o saco.
- Quer saber, fique aí sozinho com sua comida, eu vou tomar um banho e dormir.
-Vai, vai e não me enche.
Vera entrou no quarto e trancou a porta. Logof dava risadas e ficou mais contente ainda quando viu Jorge tirando uma cerveja da geladeira. O morcego induziu o homem a beber até dormir e saboreou tudo com seu mais novo amigo. Vera chorava de raiva pensando que o marido tinha realmente outra, passara mais uma noite e ele não a procurara.
Na manhã seguinte não teve muita conversa, se arrumaram e cada um pegou seu carro em direção ao trabalho.
Ao chegar para o almoço, Vera recebeu uma mensagem de Jorge.
- Não me espere, estou enrolado no trabalho.
Com os olhos cheios de água, Vera preparou um simples sanduiche e almoçou sozinha. Logof que estava perambulando pela casa, começou a colocar seu trabalho em prática, manipulou pensamentos destrutivos para enlouquecer a garota, mas logo, sua curiosidade lhe tirou o foco.
Um espírito aproximou de Vera, Logof se afastou para poder observá-la.
- Moça, querida! Ajude-me, por favor! Você precisa avisar meu filho que estou aqui. Implorou uma senhora branca, com vestido estampado e bengala em uma das mãos.
Vera que estava comendo, sentiu uma dor terrível nas pernas. Uniu as mãos e começou a falar em voz alta.
- Meus queridos irmãos de luz, eu não posso e não sei como ajudar essa irmã que está ao meu lado, mas peço que a ajudem da melhor maneira possível.
A senhora, ouvindo as palavras de Vera e a prece feita logo em seguida, foi para o quintal e sentou embaixo da roseira.
Logof não conseguiu mais se aproximar da mulher e transportou-se para o local de trabalho de Jorge.
Ao chegar ao escritório, se deparou com um um homem todo vestido de preto. Exibia um anel de pedra vermelha.
- O que faz aqui? Essa empresa é minha. Não autorizo sua entrada.
Logof percebendo a força do espírito com o qual conversava, resolveu não se indispor e tentou explicar:
- Perdão senhor, estou apenas cumprindo ordens, não pretendo invadir seu espaço, apenas tenho que cumprir com minha tarefa.
-Vá cumprir sua tarefa bem longe daqui seu miserável, na minha empresa só fica quem eu quero. Com arrogância, o homem fez um sinal com uma de suas mãos e continuou a falar alto com Jorge que lia e assinava alguns papéis.
Dois capangas bem fortes, também vestidos de preto apareceram e o colocaram para fora dali. No estacionamento, após ser jogado ao chão, Logof reconheceu o carro de Jorge, entrou e sentado no banco traseiro, permaneceu a esperar.
No final da tarde Jorge entrou no carro cansado e abatido, Logof leu os pensamentos do pobre homem que queria chegar em casa e aconchegar-se no colo da mulher. Imediatamente ele tentou manipular os pensamentos de Jorge, mas por algum motivo, não conseguiu. Tentou irradiar energia negativa para Vera, mas, também não conseguira. Sem entender muita coisa, ficou quieto por todo o caminho de volta para a casa do casal.
Vera passou a tarde toda em oração pelas almas necessitadas, assim como a velha senhora, outros mais espíritos foram até ela pedir ajuda. Ao senti-los, a médium em prece, conectava-se com os irmãos de luz. Sentados embaixo da roseira, havia dezenas de espíritos, perdidos, em oração.
Quando Jorge chegou, sentiu um bem estar que o aliviou de todas as suas preocupações, já o escravo de Marcus, encontrava-se tão fraco que mal conseguiu descer do carro.
No final do corredor, Logof viu um bando de espíritos com lágrimas nos olhos olhando para cima, ao olhar para mesma direção viu uma luz forte e branca, quis correr, mas sua fraqueza o impediu.
De súbito, foram todos sugados por essa luz, mas ainda deu tempo de ver Jorge abraçando a esposa na cozinha.
Em questão de segundos estava Logof e todos os outros espíritos sentados em uma sala escura, à frente deles havia uma mesa, ao redor dela, homens e mulheres vestidos de branco.
Quando Logof percebeu, estava em pé atrás de uma jovem senhora e ao lado dela um senhor conversava com ele.
- Seja bem-vindo, meu irmão.
Logof percebeu que o senhor não o escutava, mas escutava a jovem moça que estava a sua frente. Ela repetia em voz alta tudo que Logof respondia em pensamento.
-O que estou fazendo aqui? Onde estou?
-Você está aqui por que precisa de ajuda.
-Não preciso de ajuda, o que preciso é voltar para meu trabalho. Marcus vai me matar se perceber que não estou lá.
-Marcus não é seu dono. Meu amigo, você não precisa obedecê-lo.
- Por favor, eu preciso voltar. Ele vai acabar comigo. Pelo amor de Deus!
Por anos e anos, Logof não se lembrara de Deus e naquele momento de desespero, clamou por Ele.
-Então se recorda de Deus não é mesmo, amigo? Estamos aqui em nome dele, estamos aqui para ajudá-lo.
Logof neste momento viu Marcus à porta da sala onde se encontrava, apesar de estar distante, entrou em pânico e teve que ser acalmado pelo senhor com o qual conversava.
-Calma meu amigo, conseguimos através de você, localizar esse amigo que tanto também precisa de ajuda.
Marcus entrou acorrentado e acompanhado por dois índios, um de cada lado, não disse uma palavra, conhecia a força dos índios da tribo dos Capa Branca e apesar do ódio que estava sentindo, entrou sem questionar em uma jaula.
-Viu meu querido amigo, ele não pode mais te fazer mal, pense em você agora, me deixe ajudá-lo, só depende de você, seu destino não precisa ser igual ao dele.
Logof estava um pouco mais tranquilo, mas ainda confuso. O mediador continuou:
- Você não precisa ficar com essa forma de animal, olhe para suas mãos, está reconhecendo?
Logof começou a chorar, ao se olhar, viu que estava na forma humana, nem lembrava que era um homem. Foram muitos anos vivendo naquela forma, sendo um morcego.
- Meu pai celeste, eu me lembro agora!
-Sim Fernando, lembra-se agora de sua verdadeira identidade? Logof não existe. Gostaria agora de acompanhar um desses nossos irmãos? Com eles você irá para uma escola e lá, você encontrará as respostas para todas essas perguntas, que eu sei que estão surgindo em sua mente.
-Sim eu vou.
Ao passar pela jaula de Marcus, Fernando o olhou sorrindo, não acreditava que estava na forma humana. Marcus abaixou a cabeça, os índios perceberam o arrependimento e fizeram um sinal para alguém que se encontrava no canto da sala.
Foi então que se aproximou uma senhora de cabelos grisalhos com uma rosa branca nas mãos:
-Marcus meu filho, estou esperando por esse momento há tanto tempo...
Marcus não teve coragem de levantar a cabeça, virou-se com os olhos cheios de água. O coração ainda estava cheio de rancor.
-Tudo bem, estarei ao seu lado, até que aceite a verdade.
Mãe, filho e índios, seguiram o mesmo caminho antes percorrido por Fernando. Atravessaram o portal que os levaram para o outro lado.
Vera e Jorge em casa aproveitaram uma linda noite, logo o que Marcus tentou impedir iria acontecer, seu velho pai estava preste a reencarnar.
No banco, sentado com os outros espíritos, o Lobo apreensivo, esperava a sua vez.
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